quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

203

A sala estava um requinte de expectativas. Liguei todas as luzes. Abri um pouco uma das janelas a deixar entrar uma brisa a largar maresias. Fui à garrafeira. Old Parr, doze anos a sorrir para mim. Garrafa a meio. Pisquei-lhe uma beiça. Anda nina, anda pintar… Ela sorriu. Desarrolhou-se e beijou-me os lábios. No gira-discos coloquei uma obra prima. Acendi um Camel. The snow goose. Sentei-me em frente à parede, copo na mão, fita métrica na imaginação, cinto de segurança nas perspectivas e fui tirando medidas. Dei dois piparotes na testa. Estava a ter visões. Aquela parede ia dar cabo de mim. Ou, melhor ainda, eu ia dar cabo dela. O desafio atremendava-se! Lembrei-me daquela fabulosa música que a Giovanni me receitou para as calmas,  do Artur H, la boxeuse amoureuse… Continuei nos Camel… 

Na música quinze (15???) La Princesse perdue,  descobri a ponta por onde continuar. A noite prometia embalar a sequência dos azuis que faltavam. A cadelita, enrolada nela mesmo, sacudia o rabo, gania, suspirava, e marinava perdida em sonhos trocados. Fazia-lhe festas na moleirêta para a sossegar. Suspirava e sossegava. Tão bonita. Era o anjo dos meus azuis. Se não tivesse rolos nem pincéis, pintava com ela ao correr da parede… E chamava-lhe Marta, a rainha do pêlo… Que música poderia seguir para acabar a base que faltava? A cadela deu-me a resposta naquela sonolência conspirada. Tapei-lhe as orelhas com almofadas e um cobertor. A minorar o impacto do tremor de terra que eu queria sentir. No prato, coloquei  o lado um do Lamb Lies Down on Broadway e subi a escada. Seja o que deus quiser… 

E começou a derradeira batalha. Nem me lembro de ter baixado mais três vezes a trocar o disco e a molhar a goela, mas quando a música chegou ao The Light Dies Down on Broadway, eu estava sentado e pasmado, e cheio de sede, a olhar a parede em fogo.

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